Camarão que dorme a onda leva. Camarão que fica pode ajudar no tratamento de lesão medular! (V.1, N.3, P.3, 2018)

Tempo estimado de leitura: 9 minute(s)

Amanda de Castro Juraski

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Mestre em Engenharia Biomédica pela UFABC. Engenheira Biomédica em Ciência e Tecnologia e Colaboradora do Blog.

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O camarão de domingo na praia é fonte de uma ferramenta importante no tratamento de condições como queimaduras, fraturas ósseas e até mesmo lesões medulares. Isso, devido ao fato de que o exoesqueleto de crustáceos como camarões e caranguejos é fonte de matéria prima de Quitosana.

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A Quitosana é um polímero natural, também chamado de biopolímero, possui propriedades biológicas como biocompatibilidade (apresenta semelhanças consideráveis a componentes da matriz extracelular humana) e biodegradabilidade (naturalmente degradada no nosso organismo, sem oferecer resíduos tóxicos). Além disso, é um polímero de grande disponibilidade e, portanto de baixo custo. [1]  

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Fonte: http://www.fitnesstipsforlife.com/wp-content/uploads/2006/06/chitosan.jpg

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Uma característica importante da Quitosana é que ela possui cargas positivas na sua estrutura (polímero policatiônico), o que torna possível a formação de hidrogéis de quitosana. Hidrogéis são materiais poliméricos capazes de absorver grandes volumes de água sem sofrer degradação, uma propriedade essencial para as aplicações médicas da Quitosana, já que essa grande quantidade de água facilita a interação do polímero com tecidos humanos. A característica policatiônica da Quitosana também é interessante para as aplicações médicas, porque permite que ela interaja com outras substâncias e moléculas para recuperar tecidos lesados, como diferentes biomateriais e fármacos. [1]

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Dentro da Engenharia de Tecidos – área de conhecimento que estuda o desenvolvimento de tecidos artificiais – hidrogéis de Quitosana já foram estudados como curativos dérmicos para pacientes que sofreram queimaduras severas, como implantes para recuperar fraturas ósseas, e tecidos de difícil regeneração natural, como a cartilagem. Existem também outras tantas aplicações na indústria alimentícia e de energia, o que demonstra a versatilidade desse material.[1,2]

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Fonte: https://newatlas.com/3d-printed-ear-implantation/41869/

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Uma das aplicações mais atuais da Quitosana é como um sistema de liberação controlada. Isso significa que ela age como um reservatório do fármaco, e quando implantada no local da lesão liberará, aos poucos, o fármaco diretamente onde a sua ação é necessária. Tal técnica é especialmente importante porque contorna problemas da administração oral de fármacos que estamos acostumados, e permite administrar doses menores, diminuindo ainda os efeitos adversos associados. Agregando isso as propriedades biológicas da Quitosana citadas acima têm uma nova terapia bastante pertinente para a engenharia de tecidos. [2]

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Fonte: http://www.dermacentroitapetininga.com.br/tratamentos/drug-delivery.html

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Atualmente a recuperação do tecido nervoso é um dos principais desafios da Engenharia de Tecidos. Os neurônios – principais células do sistema nervoso – possuem uma baixa capacidade de divisão. Quando são lesionados não conseguem se recuperar naturalmente, causando perdas na função associada. [3]

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O mesmo ocorre na lesão medular, que se trata de um rompimento físico e funcional de parte da medula espinhal.  Essa por sua vez, é a estrutura responsável por fazer a comunicação do nosso sistema nervoso com todo o organismo. É ela que recebe informações sensoriais e transmite respostas motoras. Quando a medula espinhal é lesionada esse processo entre receber a comunicação sensorial e emitir resposta motora é interrompido, e como consequências têm-se as paraplegias. [4]

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Fonte: http://www.casadaptada.com.br/wp-content/uploads/2018/05/ggg.jpg

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No Brasil temos anualmente mais de 10 mil casos de lesão medular. São em sua maioria jovens do sexo masculino na faixa dos 30 anos, e que sofreram a lesão medular devido a acidentes automobilísticos, quedas e lesões por arma de fogo. [5]

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A lesão medular pode ser dividida em duas fases: primária e secundária. A lesão primária é o dano mecânico que ocorre no momento do rompimento da medula espinhal. Essa fase por si só já causa a morte de diversos neurônios, o que atualmente é irreversível. A lesão secundária é dada pelos efeitos fisiológicos da lesão primária, pois  o rompimento dos neurônios causa anormalidades na vascularização do local, excesso de excitação dos neurônios restantes e um intenso processo inflamatório. A Engenharia de tecidos possui um interesse particular na lesão do tipo secundária, pois nela pode-se atuar de forma mais efetiva. [4]

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Um dos modos de incitar a recuperação da medula espinhal lesionada é através da inserção de um arcabouço de biomaterial, carregado com moléculas que irão tratar a lesão e ajudar na recuperação do tecido. O arcabouço irá agir como um guia, conectando as pontas da lesão e direcionando a recuperação do tecido. Ao mesmo tempo, moléculas de fatores de crescimento e fármacos irão tratar as lesões secundárias e ajudar a manter a condição estável dos neurônios sadios, que por sua vez poderão recuperar a medula. [6]

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Na UFABC uma pesquisa feita dentro do Programa de Pós Graduação em Engenharia Biomédica visa desenvolver filmes de Quitosana carregados com Ibuprofeno para recuperar a lesão de medula espinhal. A pesquisa foi desenvolvida pela aluna de mestrado Amanda de Castro Juraski, sob orientação das Professoras Doutoras Juliana Daguano e Sônia Malmonge, e em colaboração com o Laboratório de Neurogenética da UFABC.

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A Quitosana há algum tempo é estudada como um material para arcabouços em tratamento da lesão medular, e o Ibuprofeno começou a ser pesquisado como um fármaco capaz de controlar o processo inflamatório que ocorre em decorrência da lesão secundária, sendo capaz também de agir em vias celulares, que irão incitar a recuperação dos neurônios lesionados. A intenção dessa pesquisa de mestrado foi de agregar as propriedades relevantes da Quitosana e do Ibuprofeno, com o intuito de gerar uma possível terapia combinatória que permitiria uma recuperação física e funcional da medula lesionada. [7]

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Nesse estudo foram analisados hidrogéis de Quitosana associados com o fármaco anti-inflamatório Ibuprofeno, e avaliou-se o desempenho desse material como um sistema de liberação controlada e a sua interação com células neuronais da medula espinhal de ratos. Observou-se que filmes de Quitosana possuem as propriedades físicas e químicas necessárias para uma boa interação com o tecido humano, e podem liberar o anti-inflamatório por até 30 dias. O material também demonstrou não ser tóxico no contato com neurônios da medula espinhal de ratos. Esses resultados são bastante satisfatórios, porque abrem a possibilidade de uma nova rota futura para o tratamento de medula espinhal.

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Devido à complexidade da patologia, ainda estamos longe de conseguir recuperar a lesão de medula espinhal através de tecidos artificiais. No entanto, são pesquisas como essa que vão, aos poucos, trilhando o caminho para um tratamento definitivo e eficiente para pacientes de lesão medular.

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Existe um ditado popular que diz “camarão que dorme a onda leva”, mas no que depender da Quitosana, camarões poderão nos levar a tecnologias cada vez mais sofisticadas para recuperação de patologias antes vistas como incuráveis.

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Referências:

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Imagem destacada: https://www.flickr.com/photos/estevamgraphic/6748904607

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[1] Dash, M., Chiellini, F., Ottenbrite, R. M., Chiellini, E. Chitosan – A versatile semi-synthetic polymer in biomedical applications. Progress in Polymer Science. v. 36, n.8, p. 981 – 1014. 2011.

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[2] Ahsan, S.M. et al. Chitosan as biomaterial in drug delivery and tissue engineering. International Journal of Biological Macromolecules. v. 11o, p. 97 – 109. 2018.

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[3] Khaing, Z., Thomas, C., Geissler, S., Schmidt, C. Advanced biomaterials for repairing the nervous system: What can hydrogels do for the brain? Materials Today. v. 17, n. 7, p. 332 – 340. 2014.

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[4] Silva, N. A., Sousa, N., Reis, R. L., Salgado, A. J. From basics to clinical: A comprehensive review on spinal cord injury. Progress in Neurobiology. v. 114, p. 25 – 57. 2014.

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[5] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas e Departamento de Atenção Especializada. – Brasília : Ministério da Saúde, 2013. 68 p.: il.

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[6] Führmann, T., Anandakumaran, P. N., Shoichet, M. S. Combinatorial Therapies After Spinal Cord Injury: How Can Biomaterials Help? Advanced Healthcare Materials. v. 6, n. 10, p. 1 – 21. 2017.

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[7] Hayta, E., Elden, H. Acute spinal cord injury: a review of pathophysiology and potential of non-steroidal anti-inflammatory drugs for pharmacological intervention. Journal of Chemical Neuroanatomy. v. 87, p. 25 – 31. 2018.

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