Participação de animais em pesquisa (V.3, N.8, P.4, 2020)

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Tempo de leitura: 5 minutos
#acessibilidade Foto de um roedor branco de olhos vermelhos na mão com luva de uma pessoa.

Texto escrito pela colaboradora Ana Paula M. Arêas

Qual é a primeira coisa que vem à sua cabeça quando pensa no uso de animais em pesquisa? Muitos responderão: maus-tratos! Essa imagem faz parte do imaginário das pessoas desde o final dos anos 1970, quando as sociedades protetoras dos animais iniciaram seu engajamento em protestos e ações contra o uso de animais na indústria de cosméticos. Ainda que muito avanço tenha sido feito nessa área, muitas empresas ainda usam animais, por não conseguirem substituir esses testes. O mesmo aplica-se à pesquisa científica.

Ao contrário do que muitos pensam, existe uma série de normas que devem ser seguidas para o bem-estar animal, que se baseiam nos princípios dos 3 Rs, propostos por William Russel e Rex Burch em 1959. O primeiro R é substituir, que vem do inglês Replace. O segundo é reduzir, da palavra inglesa Reduce e o terceiro R é refinar, cuja origem é Refine. Essa ética animal, fundamentada nesses princípios, pode ser entendida como a garantia de que abusos e maus-tratos não ocorram quando animais são utilizados em experimentos. Se existirem métodos alternativos com a mesma eficácia, esses deverão substituir aqueles que utilizam animais. Se não existirem métodos alternativos, deve ser usado um número mínimo de indivíduos para obter a resposta à pergunta científica do estudo. Além disso, esses animais devem ser mantidos nas melhores condições possíveis, que preservem sua saúde física e mental e, ainda, deem condições para que desenvolvam o comportamento que teriam na natureza.

Mas quando os animais começaram a ser considerados sujeitos de pesquisa? O uso de animais tem sua origem histórica na Grécia com os estudos de Hipócrates (460 a.C.–370 a.C.), mais conhecido como o pai da Medicina. Porém, somente no século XVI o interesse na utilização de animais para responder perguntas científicas voltou a fazer parte do repertório de ações de fisiologistas. Ainda que grande parte da composição anatômica do corpo humano já fosse conhecida por meio de necropsias, algumas questões só podiam ser resolvidas com um organismo em pleno funcionamento. Aqui pode-se citar os trabalhos em animais realizados por Andreas Vesalius (1514–1564) e William Harvey (1578–1657), que lançaram as bases do papel da circulação sanguínea na distribuição de gases pelo corpo. No século XIX, Claude Bernard (1813–1878) fez diversos experimentos de demonstração em um animal de estimação, o que reacendeu e instituiu de forma mais rigorosa a discussão sobre os limites éticos do uso de animais em pesquisa.

Também no século XIX – especificamente em 1859 – o entusiasmo pela publicação da obra Origem das Espécies por Charles Darwin (1809–1882) alavancou o uso de animais para modelos de doenças humanas. Nessa famosa publicação onde o princípio de seleção natural como um caminho para a evolução das espécies é apresentado, Darwin estabelece que todos os seres têm uma origem comum, o que pode explicar a semelhança nos processos bioquímicos que seres tão diversos quanto animais e humanos possuem. Em uma publicação posterior – A expressão das emoções em animais e humanos (1872), Darwin ainda estabelece que as emoções, classicamente consideradas humanas, podem ser experimentadas por animais. Essa capacidade de sentir é chamada de senciência. Seres sencientes podem experimentar emoções positivas como alegria e entusiasmo, mas também algumas negativas e igualmente intensas, como estresse e angústia.

Com essa base científica de semelhança de processos entre animais e humanos, a ciência dos modelos animais para doenças humanas começou a se estabelecer. A experimentação em animais é uma parte crucial dos testes pré-clínicos de produtos com atividade biológica, como medicamentos e vacinas. Diariamente estamos sendo bombardeados com informações das vacinas anti-coronavírus que estão sendo testadas em humanos de diversas partes do mundo. Sem dúvida, nunca na história moderna da humanidade o clamor por uma vacina eficiente contra um patógeno tenha sido tão intenso e global. Mas como chegamos na fase de testes em humanos, os chamados testes clínicos? Tomemos como exemplo a fase pré-clínica do desenvolvimento de uma vacina. Essa etapa prevê o estudo molecular dos seus componentes, teste de toxicidade em células em cultura e, finalmente, os testes em animais. Esse é um exemplo de experimento em animais que não pode ser substituído por nenhum outro.

Ainda que animais e humanos não compartilhem 100% do genoma (material genético do indivíduo), eles devem ser suficientemente similares para apresentarem respostas semelhantes. Mas alguns animais são mais parecidos com humanos do que outros. Os mais próximos são os primatas não-humanos, como chimpanzés, orangotangos, macacos Rhesus, entre outros, justamente porque humanos também são primatas. Ser mais próximos de humanos também implica sentir quase como humanos, por isso, o uso de primatas é bastante restrito na pesquisa pré-clínica. São usados somente se o alvo de estudo só puder ser reproduzido neles, como o modelo animal de coronavírus, que aparentemente não infecta os animais mais comuns de laboratório, os camundongos.

Todas as vacinas que estão sendo testadas contra o novo coronavírus certamente passaram por uma fase pré-clínica de teste em animais, ainda que acelerada, onde se avaliou a segurança da formulação, capacidade de estimular o sistema imunológico e proteção dos efeitos da doença-alvo. Há casos em que uma formulação funciona em animais, mas não em humanos (esses casos são mais raros) e, por outro lado, as vacinas que não funcionam em animais dificilmente serão eficazes em humanos. Por isso, uma formulação candidata deve ter bom desempenho nos testes animais, caso contrário, é abandonada ou modificada para chegar a uma composição mais vantajosa. Podemos dizer que a experimentação animal de compostos biologicamente ativos funciona como um funil, onde só os componentes mais eficientes podem seguir em frente para a fase clínica de testes. Dessa forma, os testes em animais ainda são essenciais para o progresso de pesquisas científicas relacionadas à saúde humana.

Muito há ainda a se percorrer na ciência para a substituição dos modelos animais por métodos de experimentação sem seres vivos, mas o avanço tem sido constante. Os maiores entusiastas no desenvolvimento dessas técnicas são, sobretudo, cientistas que utilizam animais em suas pesquisas, mas que enxergam a preciosidade e a importância moral da vida animal.

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Pexels

[1] ARÊAS, A.P. Visão Crítica da Biotecnologia. NTE-UFABC – Núcleo de Tecnologias Educacionais da UFABC. 2016.

[2] HESS, U.; THIBAULT, P. Darwin and emotion expression. American Psychologist, v. 64, n. 2, p. 120-128, 2009.

[3] Portal do CDC (Center for Disease Control and Prevention) – Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), disponível no link: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/daily-life-coping/animals.html, acesso em 23/jul/2020.

[4] WEATHERALL, D. Animal research: the debate continues. The Lancet, v. 369, p. 1147-1148, 2007.

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