Crônica de uma tragédia anunciada: a morte assistida do Museu Nacional (V.1, N.4, P.1, 2018)

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Tempo de leitura: 4 minutos
#acessibilidade Foto do Museu Nacional ardendo em chamas.

Texto escrito pela colaboradora Fabiana Rodrigues Costa Nunes

Neste dia emblemático, dia do biólogo… a formação que me possibilitou a especialização em Paleontologia pela qual hoje trabalho… Neste ano emblemático, bicentenário do Museu Nacional… instituição que me acolheu nesta especialização e que é hoje referência da minha formação como paleontóloga… Dia e ano emblemáticos acometidos pelo golpe de uma tragédia longamente anunciada quando, nesta madrugada, o Bastião da História, Ciência e Cultura de nosso país ardeu em chamas e se reduziu, diante dos nossos olhos estarrecidos, a cinzas. Sem que nada pudéssemos fazer a não ser desesperar-nos pela agonia de assistir, impotentes, este baluarte agonizar consumido pelo fogo que o corpo de bombeiros não conseguiu controlar.

Não havia água nos hidrantes… não havia verba nos cofres… não havia um olhar de consolo para este gigante que implorava na mendicância e no abandono de um descaso público tão imensurável quanto a tragédia que o acometeu. E agora, como o doente que agonizava pelo remédio que lhe furtaram, resta o lamento da sua morte por aqueles que não puderam por ele em vida.

Para aqueles que ainda titubeiam em reconhecer a importância desta instituição que hoje tristemente estampa todos os principais jornais do mundo, esta foi a residência da Família Real Portuguesa (1808-1821) e da Família Imperial Brasileira (1822-1889) e que completou, no dia 6 de Junho deste ano, 200 anos de existência, não obstante abrigue em seu seio inestimável material que retrocedem em tantos muitos idos anos a sua história, como Luzia, esqueleto do mais antigo fóssil humano encontrado nas Américas, fósseis de animais e plantas que reconstroem cenários passados de nosso país e do mundo, objetos constituintes do acervo arqueológico egípcio, mediterrâneo, pré-colombiano e brasileiro, muitos deles reunidos sistematicamente pelo próprio Dom Pedro I, além de tudo o quanto foi, ao longo deste bicentenário, compilado pelos esforços contínuos de pesquisadores nas mais diversas áreas de conhecimento que a instituição abraça, como Antropologia, Zoologia e Botânica. Sem contar o número incalculável de documentos que registram toda a História da própria instituição e do país, que tem nas suas paredes o receptáculo destes 200 anos que moldaram a sua identidade.

Infelizmente, a Pátria, que tanto se valeu desta instituição para preservar esta mesma identidade guardada e celebrada em seus alicerces por tantos anos, não soube dar à mesma o valor na medida que mereceria o seu mais valoroso baluarte. A despeito de todo empenho despendido de todas as formas por funcionários e pesquisadores da casa, o Museu padecia à míngua, sobrevivendo de esmolas que gotejavam, escassas, nas mãos daqueles ávidos por restaurar um pouco da majestade do lugar, conferindo ao mesmo a importância que lhe era devida.

Todavia, afinal, no Brasil, faz-se valer o velho ditado: é depois da porta arrombada que se admite colocar a tranca. No entanto, no caso do Museu Nacional, e não obstante o que clama agora a ignorância oportunista de alguns políticos, a perda de tal acervo é irreparável. O palácio perdura, ainda, na iminência de que algumas das suas partes não resistam e colapsem, e talvez a sua estrutura possa ser recuperada a partir destas iniciativas de consternação póstuma… mas o acervo está perdido. Perdido para sempre.

E no entanto o Museu Nacional resiste… instituição majestosa como a História que abriga, como a Ciência que, sob seus pilares, se reinventa e reconstrói a cada dia, como a Cultura que ali faz morada, em um país onde nada disto é celebrado e muitas vezes esquecido. Que a tragédia da lenta agonia deste gigante consumido na tela vermelha de fundo que estampou seu lento extermínio para o mundo todo seja, hoje, o símbolo de que a História, Ciência e Cultura devem ser prioridade de um país que não queira ser condenado ao próprio anonimato. Porque, como disse Marcus Garvey, “um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”. Não percamos o foco, nas palavras do então diretor do Museu Nacional, Prof. Dr. Alexander Kellner. Não deixemos que esta, como tantas outras tragédias, tenham acontecido em vão! Luto por tudo o que se perdeu, resistência para tudo o que ainda pode ser erguido! Força, gigante! #LUTO

Profa Dra. Fabiana Rodrigues Costa Nunes fez seu mestrado e doutorado em Zoologia no Museu Nacional/UFRJ e foi pesquisadora de Pós-doutorado no Museu Nacional/UFRJ, tendo sido vinculada ao Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional – Setor de Paleovertebrados. Hoje é professora da UFABC, sendo vinculada ao Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH).

Fontes:

Fonte da imagem destacada: By Felipe Milanez (Sent by the photographer — OTRS-sent) [CC BY-SA 4.0 ], via Wikimedia Commons

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