Dark, viagem no tempo e a faixa de Moebius (V.3, N.7, P.2, 2020)

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Tempo de leitura: 9 minutos
#acessibilidade Imagem de um dos personagens principais de frente para o buraco onde tudo começa. Ele está no meio de uma floresta e veste calça jeans e jaqueta amarela.

Texto escrito em colaboração com Felipe Cesar e Gabriela Dias

Para os fãs da série Dark (original Netflix) o apocalipse aconteceu no último dia 27/06/2020 com o lançamento da última temporada. Este texto tem como objetivo discutir se alguns dos fatos ditos “científicos” da série fazem algum sentido na vida real e também propor uma forma de visualizar sua linha temporal. Os autores deixam aqui o alerta de que este texto contém spoilers, então não leia se você ainda não assistiu a todos os episódios.

O ingrediente mais importante da série é a capacidade dos personagens viajarem no tempo (passado e futuro se é que eles são duas coisas diferentes). Para começar vale lembrar que viagem no tempo é uma coisa já conhecida na física, existem várias formas de viajar no tempo para os físicos, mas todas as formas envolvem entender as teorias da relatividade restrita e geral, ambas desenvolvidas principalmente por Albert Einstein, e partem do conceito base que é: nada no universo pode viajar mais rápido do que a luz.

A forma mais simples que conhecemos de viagem no tempo pode ser observada nos múons (partículas subatômicas) através do experimento de Rossi-Hall. O experimento observa um efeito conhecido como dilatação temporal, que é previsto pelo teoria da relatividade restrita.

O conceito físico de velocidade está relacionado ao quão rápido um corpo de desloca, ou seja, ele vem de uma razão entre distância percorrida e tempo decorrido para esse movimento. A relatividade diz que as medidas de distância e tempo podem ser alteradas caso o corpo em questão tenha uma velocidade muito próxima da luz, então, quanto mais perto a velocidade de um corpo está da velocidade da luz dois efeitos acontecem na visão deste corpo em movimento: o espaço contrai (assim a velocidade vai diminuir no referencial deste corpo) e/ou o tempo dilata (novamente a velocidade final vai diminuir). A dilatação do tempo e a contração do espaço são, portanto, mecanismos para que nenhum corpo atinja a velocidade da luz.

Logo, para um corpo com velocidade muito próxima à velocidade da luz o tempo não passa da mesma forma, ele passa mais devagar e assim ele “viaja no tempo”, pois ele tem uma percepção diferente da passagem do tempo, mas note que essa forma de viajar no tempo é limitada, pois só se viaja para o futuro desse jeito.

Os múons são partículas elementares que são observadas na Terra vindas do espaço, mas sem a ideia de dilatação do tempo elas não deveriam ser observadas aqui, pois elas deveriam decair (se quebrar em outras partículas menores) antes de chegar na Terra. O detalhe é que como ela viaja a uma velocidade muito alta o tempo passa diferente para elas, por isso o tempo vivido por ela é suficiente para que não haja decaimento até chegar na superfície terrestre.

A possibilidade de seres humanos viajarem no tempo através da dilatação do tempo é difícil, pois acelerar um corpo do nosso tamanho até a velocidade da luz exigiria uma tecnologia avançada além de proteção, já que nosso corpo não está adaptado a velocidades tão grandes. Entretanto, a série explora outra teoria de viagem no tempo, essa bem mais complexa e bem mais improvável que a anterior. Na série os personagens viajam no tempo através de uma ponte de Einstein-Rosen, uma previsão teórica das equações de Einstein. O episódio 8 da primeira temporada trata muito deste assunto. No diálogo que dura todo o episódio entre Jonas K. e H. G. Tannhaus podemos encontrar várias explicações sobre os tais buracos de minhoca, indico re-assistir este episódio depois de ler este texto.

Bom, vamos com calma. As equações de Einstein são a base da relatividade geral. De forma simplificada, o que ele propõe é que devemos entender nosso universo de maneira diferente, que na realidade o espaço é curvo e que vivemos numa espécie de cobertor e as massas deformam essa espaço, assim essa teoria consegue explicar a origem da força da gravidade. A figura abaixo mostra de maneira pictórica esse conceito. Se quiser entender melhor essa ideia clique aqui.

deformacao espaco tempo - Dark, viagem no tempo e a faixa de Moebius (V.3, N.7, P.2, 2020)

#acessibilidade Representação pictórica da malha espaço-tempo sendo deformada. Há um plano abaixo formado por linhas verdes verticais e horizontais. Acima há o Sol, uma esfera amarela luminosa, e a Terra, uma esfera muito menor. A parte imediatamente abaixo desdes dois corpos está deformada, como se algo muito pesado estivesse sobre ele.

O curioso é que, se uma massa muito grande surgir no espaço-tempo então a deformação causada por ela é tão grande que suga tudo, inclusive a luz, e aí surgem os buracos negros. Eles vêm da morte de estrelas muito grandes. Quando elas não conseguem produzir energia suficiente para vencer a força gravitacional elas implodem, como Franziska e Bartosz explicam, cada um no seu universo (rs), durante a aula de física.

As equações de Einstein tentam explicar como se dá o movimento nessa malha espaço-tempo, também conhecido como espaço de Minkowski. Vale dizer que essa é a proposta de um modelo matemático que pode ser usado para explicar muitas coisas, por isso resolver essas equações é muito complicado e só conseguimos fazer isso para casos bem específicos e com algumas considerações. Lembra na escola quando o exercício pedia para você desconsiderar o atrito? É parecido com isso, conseguimos resolver os casos mais simples primeiro. As pesquisas modernas tentam tornar cada vez mais complexos os estudos.

Isso é uma coisa muito comum em física, quando temos sistemas muito complexos (planetas, estrelas, cometas entre outros) e que não podemos fazer muitos experimentos diretamente, os cientistas tentam entender esses corpos através da matemática a partir de algumas observações que fazemos na Terra e então se cria uma teoria que tenta prever algumas coisas que muitas vezes ainda não observamos diretamente. Só porque um modelo matemático baseado em algumas observações previu algo não quer dizer que exista mesmo.

Essas equações preveem teoricamente a existência de objetos que deformam a malha de maneiras específicas, por isso os buracos negros, objetos previstos há muito tempo, só depois foram observados de fato.

A ponte de Einstein-Rosen é mais uma previsão teórica das equações de Einstein. Basicamente as equações preveem que seria possível dois pontos distantes do espaço-tempo se conectarem via um buraco negro e um buraco branco. Enquanto o buraco negro seria um ponto de alta densidade que suga tudo pra dentro dele, o buraco branco seria a saída de toda essa matéria.

Dessa maneira, entrando pelo buraco negro e saindo pelo buraco branco, poderia se viajar para qualquer lugar do espaço em qualquer tempo. Assim se constrói a viagem no tempo proposta por Dark, a essa ponte também se dá o nome de buraco de minhoca.

ponte einstein rosen - Dark, viagem no tempo e a faixa de Moebius (V.3, N.7, P.2, 2020)

#acessibilidade Representação pictórica de uma ponte de Einstein-Rosen.

Muitos cientistas já estudaram buracos de minhoca e o que sabemos até hoje é que eles não existem, pois as previsões matemáticas mostram que eles são muito instáveis, ou seja, eles aparecem e somem muito rápido pelo universo. Até hoje nenhuma previsão teórica de buraco de minhoca estável foi feita e menos ainda um buraco de minhoca que fosse transitável, pois acredita-se que buracos negros matariam qualquer ser humano que tentasse atravessar por ele. Entende-se que para que fosse possível construir um buraco de minhoca estável e transitável seria necessário um novo tipo de matéria que tivesse características muito específicas como uma densidade de energia negativa, que é um conceito muito estranho de se imaginar na prática, mas que aparece nas soluções matemáticas. A essa matéria se deu o nome de matéria exótica. Esse conceito é confuso até para os pesquisadores.

Então, viagens no tempo tais como as propostas por Dark ainda estão muito longe de acontecer. A matéria usada pelos personagens para viajar no tempo é produto de um acidente nuclear e provavelmente não seria a tal matéria exótica, pois já temos um entendimento muito grande sobre fissão e fusão nuclear e sabemos muito bem as propriedades delas e o tipo de matéria que elas geram. Além disso, até hoje não é claro para os físicos se seria possível viajar para o passado, pois isso violaria a ideia de causalidade, como você já entendeu, pois a série bate muito nessa tecla. Se fosse possível viajar para o passado não saberíamos o que veio antes, não existiria passado, presente e futuro tudo seria um grande laço e não é possível explicar exatamente o que deveria acontecer na formação e na destruição desse laço. Na série os personagens simplesmente somem, mas isso é um problema sério do ponto de vista físico, pois para isso deveríamos violar o princípio de conservação de massa e energia e esses são conceitos já muito bem estabelecidos na física.

Um fato indiscutível é que Dark é uma série muito bem escrita e produzida, as histórias se encaixam muito bem ao fim da série, fatos da terceira temporada acontecem e explicam acontecimentos da primeira. O que parece ajudar a historia a fechar é o fato de existirem duas realidades em que as coisas são diferentes, mas conforme você continua assistindo a série é possível notar que apesar de parecerem diferentes ambas fazem parte da mesma realidade, pois uma história interfere na outra e assim cria-se novos laços infinitos onde não se sabe o fim nem o começo e nem se aquilo faz parte do mundo 1 ou do mundo 2. Gostaria de deixar aqui uma tentativa de resumir tudo isso numa imagem, a famosa faixa de Moebius:

faixa de moebius - Dark, viagem no tempo e a faixa de Moebius (V.3, N.7, P.2, 2020)

#acessibilidade Representação pictórica de uma ponte da faixa de Moebius.

A faixa de Moebius é um objeto curioso. Se você olhar sem atenção ela parece ter uma parte de dentro e uma parte de fora, mas basta continuar andando por ela que você vai aparecer do outro lado. Por isso acho que ela é uma representação muito boa do enredo de Dark: quando parece que as histórias se bifurcaram na realidade elas são apenas partes diferentes da mesma história. Por exemplo, no dia do apocalipse, em que parece que há a possibilidade da personagem Martha salvar ou não Jonas, assim criando duas histórias (lado de dentro e lado de fora da faixa), na realidade basta seguir assistindo e notar que a realidade onde ela não salva Jonas acaba interagindo com a em que ela salva Jonas (Martha mata Jonas que acabou de ser salvo), assim elas fazem parte da mesma história.

Então, apesar de haver alguns problemas científicos na construção de Dark, ela sem dúvida consegue prender o público. Ao tentar entender os fatos científicos abordados no seriado podemos aprender muitas coisas, desde o que são múons até conhecer a faixa de Moebius que é um objeto muito importante para topologia, uma área da matemática. Espero que tenham gostado dessas explicações e lembre-se: “o homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer”.

Observação para o leitor mais atento e curioso: durante a série também menciona-se o gato de Schrödinger para justificar a existência de duas realidades paralelas, mas este experimento mental que Schrödinger propôs não tem nenhuma relação com universos paralelos. Ele é apenas uma tentativa de explicar o colapso da função de onda de forma mais didática. corpos macroscópicos (nós por exemplo) não sofrem efeitos quânticos. Se quiser entender melhor leia nosso texto “O que (não) é quântica”. Outro conceito abordado de maneira errônea é o de emaranhamento quântico. Em linhas gerais, as histórias estão emaranhadas no sentindo de misturados, entrelaçadas ou qualquer outro sinônimo dessas palavras, mas emaranhamento quântico é um termo científico que quer dizer outra coisa. Se você tiver curiosidade de saber mais sobre isso comenta aqui embaixo que podemos fazer um texto específico sobre este conceito e conectar com Dark, o que acha?

Fontes:

Fonte da imagem destacada: Divulgação

Fonte da imagem 1: Universo Racionalista, créditos: T. Pyle

Fonte da imagem 2: Science News

Fonte da imagem 3: Superinteressante, créditos: Tiago Lacerda

F Lobo, P Crawford – Gazeta da Física, 1999 – “Wormholes“: túneis no espaço-tempo
Acessado 28/06/2020: https://www.spf.pt/magazines/GFIS/85/#collapse0

Dissertação – http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/1999

Para saber mais:

Se quiser visualizar toda a árvore genealógica dos personagens indico este link – https://dark.netflix.io/pt

Outros divulgadores:

Vídeo Viagem no tempo do canal Nerdologia no YouTube

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