A pandemia do Novo Coronavírus apresenta uma série de desafios complexos às sociedades e suas relações de poder em exercício. Desafios que em maior ou menor grau estão interligados e, portanto, demandam respostas e ações integradas. A exigência desse “bloco de respostas” coloca em cheque os arranjos políticos, econômicos e sociais constituídos.

Adam Smith, figura de destaque do Liberalismo clássico, toma o trabalho humano sobre a natureza como aquele capaz de produzir riqueza, ou seja, é do trabalho das pessoas que vem os produtos para suprir as necessidades humanas. O autor também concebe a divisão social do trabalho como necessária à manutenção da vida dado o fato de ser impossível que uma mesma pessoa possa apenas com o seu próprio trabalho obter todos os produtos que precisa para viver [1]

No entanto o entendimento de que é só coletivamente viável a continuidade do gênero humano não leva o autor a concluir que é a colaboração consciente que deve guiar as ações dos que produzem, pelo contrário, defende que os diferentes indivíduos trocam o fruto de seus trabalhos buscando o máximo de vantagem individual em cada operação. No pensamento de Smith (1996a. p. 81) todo ser humano acaba por se tornar “(…) de certo modo comerciante”, guiando-se pela busca de vantagens individuais em concorrência com seus pares. É dessa promessa de obtenção de riqueza pessoal 

 “(…) que primeiro incitou os homens a cultivar o solo, a construir casa, a fundar cidades e comunidades e a inventar e fazer progredir todas as ciências e artes que enobrecem e embelezem a vida humana” (SMITH apud HUNT. 1989. p. 66) [2].

As sociedades ocidentais contemporâneas são devedoras dessa concepção de sujeito. Academicamente o conceito de natureza humana é encarado como superado, compreende-se que as subjetividades são historicamente dadas ou condicionadas. A do tempo presente herda traços dessa visão de que se vive em constante concorrência com seus iguais, na qual todos tomam suas ações através de interesses egoístas.

 

Regras sociais e divisão do trabalho mediada por objetos. HollNagel, E. ResearchGate. Adaptado.

Contudo seria tolo não buscar o que há de novidade na formação de subjetividade atual, esta que encara a pandemia. Em um de seus cursos no Collège de France, Michel Foucault identificou o que ficou conhecido na tradição como o “empreendedor de si” [3]. Se em Smith todos os indivíduos são de certa forma comerciantes, atualmente cada indivíduo é um empresário de si mesmo. Todos estão inseridos em um jogo de mercado, interesses pessoais concorrem uns com os outros e se regulam. Nos termos de Dardot e Laval (2016, p. 378) “A empresa é promovida como modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que se deve fazer frutificar”.

Cada sujeito então crê que deve crescer infinitamente, acumulando seus capitais pessoais e avançando em sua própria rentabilidade sempre em concorrência com seus pares. Porém nessa aplicação da lógica de mercado para as vidas particulares recebe-se a volatilidade e incerteza presente no meio das empresas privadas, os riscos de fracasso financeiro, emocional e afins são constantes e o empresário de si tem em sua consciência que se fracassar será por sua própria incompetência. Há de se fazer então uma gestão racional da própria vida através da avaliação de custos e riscos visando objetivos vindouros, de acordo com Lemke (2017, p. 71)

A visão de um eu empreendedor promete múltiplas opções e oportunidades de consumir, mas ela também necessita de cálculo e estimativa de riscos permanentes, estabelecendo assim um medo permanente do fracasso. (…) A ameaça constante de desemprego e de pobreza, e a ansiedade em relação ao futuro induzem a previdência e a prudência.

O sujeito temeroso se planeja e gere a própria vida, “investe” em si para ter retornos futuros. A educação que na modernidade era vista como meio para a emancipação, virtude e o conhecimento universal humano passa a ser apenas mais uma ferramenta para a obtenção de qualidades que confiram vantagem no modelo de concorrência como a eficácia, flexibilidade e resiliência [4], características que auxiliam na procura de um emprego rentável e na execução da chamada “educação financeira”, a expressão máxima desse pensamento está nas teorias de capital humano [5].

O outro não é visto como aliado ou parceiro, mas como um perigo. Um jovem Karl Marx já notara esse traço na própria utopia liberal moderna dos Direitos Humanos. Ao passo que a Constituição Francesa de 1793 garantira em seu artigo 16º que o direito à Propriedade permite ao cidadão francês gozar de tudo que tem a seu bel prazer [6], a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 em seu artigo 4º afirma que esse usufruto só pode ocorrer ao passo que não interfira nos direitos de terceiros [7]. Em outros termos, não é no coletivo que se performa a liberdade, mas sim onde ela é constrangida. Essa mentalidade “(…) faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade” (MARX, 2010. p.49).

 

WATTERSON, B. Calvin e Haroldo: O Progresso Científico deu “Tilt”. São Paulo: Best News, 1991.

Frente ao cenário da pandemia atual, esses empreendedores de si formados através e para a competição só são capazes de procurar respostas individualizadas e o temor do fracasso econômico e social se soma ao medo de sucumbir perante a doença; seus pares são concorrentes e obstáculos, não auxílios. O cada um por si no meio financeiro se torna o cada um por si na manutenção da saúde física. Sem preocupações coletivas os sujeitos estocam máscaras, luvas e outros equipamentos ou insumos que se tornam ausentes nas unidades de saúde, onde são indispensáveis. Por outro lado os que dependem do seu trabalho diário para seu sustento, sobretudo trabalhadores informais, se lançam às ruas preferindo a dúvida do contágio à certeza da fome. Não se toma como possível uma solução coletiva, fora da lógica individual, já que não se vai pedir à sociedade inteira para garantir os indivíduos contra os riscos, sejam os riscos individuais, do tipo doença ou acidente, sejam os riscos coletivos, como os danos materiais, por exemplo; não se vai pedir à sociedade para garantir os indivíduos contra esses riscos. (FOUCAULT, 2008, p. 196-197).

O arranjo social pede apenas que cada um possa garantir a si contra os riscos, caso contrário deverá pagar com as consequências do fracasso. A subjetividade do empreendedor de si é impedida de sequer pensar em alternativas que fujam desse escopo. Nem mesmo o Estado, que possui dever constitucional e capacidade para executar a seguridade social, é devidamente cobrado. Ora, as consequências dessa situação são inevitavelmente trágicas, socialmente o todo é mais do que a soma das partes e a realidade impõe vigorosamente que utilizemos do máximo de nossas possibilidades para minimizar os prejuízos que a doença é capaz de provocar.

A subjetividade empreendedora, egoísta, temerosa e previsível, precisa ser negada. Para Foucault (2010, p. 283) “Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos”. Essa recusa inevitavelmente promoverá novas formas de subjetividade, de ser e existir. Que a pandemia do COVID-19 sirva de alerta para a necessidade da formação de uma subjetividade mais coletiva, potente e garantidora tanto da existência quanto da dignidade e dos horizontes humanos.

 

 

Escrito por Vinícius Pintor.

 

[1]  “Todavia, uma vez implantada plenamente a divisão do trabalho, são muito poucas as necessidades que o homem consegue atender com o produto de seu próprio trabalho. A maior parte delas deverá ser atendida com o produto do trabalho de outros (…)”. (SMITH, 1996a. p. 87).

[2] É necessário esclarecer que para Smith tal cenário é vantajoso, pois as ações livres e egoístas dos indivíduos acabam por aumentar a riqueza humana e consequentemente beneficiam a todos mesmo que não possuam intenção disso, inclusive num nível superior à ação bem-intencionada estatal. Observar Smith, 1996b. p. 169-70.

[3] Observar Foucault, 2008. p. 369.

[4] LAVAL, 2004, p. 22-3.

[5] O conceito de capital humano é formulado pelos economistas ligados à dita Escola de Chicago. Refere-se ao “terceiro fator” do crescimento econômico, explicando o resíduo de crescimento que não era entendível pelo capital fixo empregado. É tomado como capital humano o conjunto de habilidades, saberes e capacidades dos indivíduos que geram maior produtividade. A nível individual é o que explica os rendimentos econômicos de cada pessoa. Nessa lógica empreendedora, os conhecimentos e saberes servem à Economia e cada indivíduo deve investir em si para acumular capital dessa natureza, atingindo um nível de rentabilidade e por consequência de bem-estar econômico.

[6] Artigo 16.º – O direito de propriedade é aquele que pertence a todo cidadão de gozar e dispor à vontade de seus bens, rendas, fruto de seu trabalho e de sua indústria (FRANÇA apud MARX. 2010. p.49).

[7] Artigo 4.º – A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. (FRANÇA, 1789).  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo, SP: Boitempo, 2016.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolitica: curso dado no Collége de France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008.

________________. Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos por Manoel de Barros Motta. Tradução de Elisa Monteio & Inês Autran Dourado Barbosa. 2º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FRANÇA. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 1789. Disponível em <https://www.senat.fr/lng/pt/declaration_droits_homme.html>. Acesso em 05/04/2020.

HUNT, Emery Kay. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. Tradução de José Ricardo Brandão Azevedo. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neo-liberalismo em ataque ao ensino público. Tradução de Maria Luiza M. de Carvalho e Silva. Londrina: Editora Planta, 2004.

LEMKE, Thomas. Foucault, governamentalidade e crítica. Tradução de Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman Camargo Santos. São Paulo: Editora Politéia, 2017.

MARX, Karl. Sobre questão judaica. Tradução de Nélio Schneider, Wanda Caldeira Brant. São Paulo, SP: Boitempo, 2010.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações in Os Economistas: Adam Smith. Volume I. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo, SP: Editora Nova Cultural, 1996a.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações in Os Economistas: Adam Smith. Volume I. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo, SP: Editora Nova Cultural, 1996b.