Em tempos de pandemia, muitos são os entraves que precisam mobilizar opiniões e posições dos governos, a fim de minimizar esses problemas e traçar novas perspectivas. Com a educação básica, entendida como direito público subjetivo e  assegurada pela Constituição Federal de 1988, não pode ser diferente. No Brasil, muitas redes de ensino têm optado pela modalidade de ensino remoto, numa espécie de educação à distância (EaD) improvisado, produzindo materiais às pressas para que os alunos possam estudar em suas casas, envolvendo professores na gravação de vídeo-aulas e transmissões ao vivo em múltiplas plataformas virtuais. Essas ações podem até ser vistas com bons olhos pela opinião pública, mas até onde essa variação barateada de EaD pode garantir a oferta e a qualidade de cursos que até então eram presenciais?  

Antes de responder a pergunta, precisamos pensar na importância da educação básica para a formação de crianças e jovens. O Artigo nº 205 da CF-1988 define que

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).

Sendo assim, educar é garantir aos jovens o seu pleno desenvolvimento, a partir de “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Art. nº 206). Educar é levar aos alunos conhecimentos dos quais talvez eles nunca teriam tido a oportunidade de conhecer sem a escola (YOUNG, 2011). É fazer o aluno florescer e “receber o tipo de educação que lhe permita refletir sobre o seu modo de vida à luz dessas alternativas.” (BRIGHOUSE, 2011, p. 13). Sendo assim, ampliar as potencialidades de crianças e jovens requer os conteúdos das diversas áreas do conhecimento, mas também requer interação social, afeto, humanização. É por esse motivo, entre outros tantos, que a educação básica precisa ser presencial. As escolas ensinam muito mais que conteúdos. Ensinam modos de vida, ao desenvolver indivíduos conhecedores do seu papel,  inseridos na coletividade de nossa sociedade.

A partir daí, enfrentemos juntos o primeiro dilema: a burocracia que envolve o cumprimento dos documentos curriculares impede que as redes de ensino compreendam o real sentido da educação básica. Há uma preocupação cada vez maior com métodos de ensino, na delimitação de conteúdos e na aquisição de competências, muito em virtude de uma visão reducionista de educação, que vê a escola e o aluno como produtores de índices de qualidade via avaliações de larga escala. Limitar a educação nesses termos é compreender as relações educacionais como se fossem relações puramente econômicas, concebendo o estudante como consumidor e o processo educativo como mercadoria. (BIESTA, 2013).

Esse fenômeno, chamado de aprendificação por Gert Biesta, ignora um debate mais amplo sobre a função do conhecimento e da escola na vida dos alunos, pois os problemas estão nos métodos, nunca em objetivos mais gerais. Até a relação professor-aluno se modifica neste processo: o processo de ensino-aprendizagem, que reforça um vínculo importante entre o que aprende e o que ensina, hoje é apresentado apenas como aprendizagem. A responsabilidade pelo aprendizado continua a ser da escola e dos professores, mas assim como nas relações de mercado, quem vende a mercadoria, onde se vende e como se vende não é tão fundamental, desde que ela seja oferecida com suposta qualidade. Em outras palavras, as relações escolares que envolvem vínculos afetivos e socialização ficam em segundo plano, já que o objetivo mercantil de uma escola é que os conteúdos curriculares sejam “ensinados”. Não é incomum ouvirmos dizer que o professor hoje deve ser um facilitador, um mediador, um colaborador da aprendizagem. Para o aluno, são utilizadas palavras como protagonismo, empreendedorismo e liderança. A questão que se coloca é que não há como focarmos apenas nos alunos como se fossem consumidores, porque escola não é empresa.

       Com a pandemia, as plataformas de EaD passam a ser uma solução viável para que crianças e jovens não percam o ano letivo, mas a avaliação de que essa implantação seja positiva em todos os aspectos só é válida se entendermos a educação básica a partir do viés da aprendificação e mercantilização do ensino. Os currículos escolares são muito mais do que os documentos curriculares prescrevem: eles são vividos, experimentados, sentidos em cada uma das escolas brasileiras. O enquadramento de todas essas relações em instrumentos virtuais de aprendizagem é danoso ao desenvolvimento dos alunos, não só porque a sociabilidade é prejudicada, mas também porque se aprende pelo afeto (AQUINO & SAYÃO, 2004). O afeto vai muito além do seu aspecto emocional. Afetar é tirar o aluno de um lugar confortável, dando-lhe possibilidades para conhecer outros modos de vida. Como afetar esses jovens sem o contato necessário entre os colegas de classe? Como trazer a eles os conhecimentos prescritos pelos documentos curriculares se as mídias e seus familiares só debatem sobre a COVID-19? Por que não usar essas ferramentas virtuais para se ensinar e conversar sobre as pandemias, sobre o valor e o sentido da vida, sobre relações humanas, sobre sustentabilidade, saúde mental e papel da ciência? [1] 

As dificuldades no aprendizado dos alunos em tempos normais já são uma realidade na educação brasileira. Pudera, já que se investe muito pouco por aluno na educação pública, o que implica no fato de que os professores sejam mal remunerados e possuírem cargas excessivas de trabalho, além de as escolas serem mal equipadas (PINTO, 2014). Contudo, a qualidade da educação, para além de depender dos insumos e da valorização de seus profissionais, depende muito de fatores socioeconômicos. Vivemos em um país onde 31,1 milhões de brasileiros (16% da população) não têm acesso a água fornecida por meio da rede geral de abastecimento; 74,2 milhões (37% da população) vivem em áreas sem coleta de esgoto; outros 5,8 milhões não têm banheiro em casa; 11,6 milhões (5,6% da população) vivem em imóveis com mais de 3 moradores por dormitório e 3,5 milhões de pessoas vivem com até R$ 145 por mês [2]. Falar em qualidade da educação sem olhar para esses dados é quase desumano.

Fonte: Do autor.

 Se vamos pensar em EaD, a situação também não é animadora. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2018 [3], apenas 42% das casas brasileiras tem computador; 85% dos usuários de internet das classes D e E acessam a rede exclusivamente pelo celular e somente 13% se conectam tanto pelo aparelho móvel quanto pelo computador. É uma realidade que já prejudica a garantia do Direito à Educação em condições normais. Se o ano letivo for cumprido à distância, a situação só piora. É o que advertem a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) [4] e a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) [5]: é necessário um outro tipo de abordagem para garantir o ensino-aprendizagem.

E como fica o professor nesses tempos? O Sindicato das Escolas Particulares de São Paulo enfatiza a partir de nota [6] que a realidade que professoras e professores estão enfrentando agora durante a quarentena e o necessário período de isolamento social está muito extenuante. Principalmente nas escolas de bairro, as gestões têm feito professores sistematizarem leituras, providenciarem materiais inéditos e recursos de apoio, estarem à disposição para dúvidas, produzirem vídeo-aulas e transmissões ao vivo. Muitos docentes, além de não ter o preparo para tal atividade, estão sendo cobrados para melhorar sua linguagem, dinamismo, e se ater mais ao tema da aula. Para manter a cobrança das mensalidades, as escolas têm atendido cada vez mais os pedidos dos pais, reforçando ainda mais a visão mercadológica da educação.

Nas secretarias municipais e estaduais, as soluções também não são muito eficazes. A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEDUC-SP) não promoveu o diálogo necessário na comunidade escolar. 

“Muitas escolas, sobretudo públicas, não possuem infraestrutura para essa modalidade, não dispõem de plataformas e AVAs, professores e professoras com formação adequada para trabalhar com a modalidade, não estando, assim como os estudantes, aptos para essa alternativa.” (CAMPANHA, 2020).

O cenário é muito complexo, mas é urgentemente necessário que outras alternativas sejam propostas. Educação à distância é uma modalidade que exige planejamento, formação e investimento. Porém, mesmo em um cenário favorável, o EaD não pode ser uma alternativa ao ensino presencial da educação básica.  Os alunos em idade escolar são seres em formação: para muitos, falta-lhes autonomia para gerir seu próprio estudo. A necessidade da existência da escola só se dá quando ela permite afetar a vida de crianças e jovens de tal forma que eles não conseguem fazer isso sozinhos. Essa vertente de ensino remoto é uma ótima alternativa para manter a concentração dos alunos para os estudo, manter o estímulo cognitivo ativado, promover debates e informações para além dos componentes curriculares, mas não para prosseguir com o ano letivo, como se estivéssemos em uma situação de normalidade. Outras alternativas são mais do que necessárias e vem sendo apresentadas por professores e pesquisadores que militam por uma educação de qualidade: atividades complementares nos finais de semana, término do ano letivo no ano de 2021, aumento da carga horária de aulas onde for possível e atividades extraclasse são boas opções. O que não é possível é tirar da escola a sua possibilidade de formação integral dos estudantes, e é imperativo que isso aconteça de forma presencial.

Escrito por Danilo Zajac.

Notas destacadas em vermelho:

[1] A psicóloga Rosely Sayão adverte sobre essa necessidade em uma entrevista concedida ao canal “Tutameia”. Disponível AQUI

[2] Dados levantados pelo Portal G1, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-2018) e da Síntese de Indicadores Sociais (SIS-2018) do IBGE. Disponível AQUI.

[3] Outros dados podem ser acessados no portal do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. Disponível AQUI.

[4] Posicionamento público – Propostas para enfrentar os efeitos da pandemia da COVID-19 na educação. Disponível AQUI.

[5] Carta aberta da Rede Nacional Primeira Infância dirigida ao presidente do Conselho Nacional de Educação. Disponível AQUI.

[6] O lado sombrio das atividades a distância. Disponível AQUI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AQUINO, J. G.; SAYÃO, R. Em defesa da escola. São Paulo: Papirus, 2004.

BIESTA, G. J. J. The beautiful risk of education. United States: Paradigman Publishers, 2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRIGHOUSE, H. Sobre educação. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO. 8 motivos para não substituir a educação presencial pela educação a distância (EaD) durante a pandemia. Disponível AQUI.

PINTO, J. M. R. Dinheiro traz felicidade? A relação entre insumos e qualidade na educação. In: PINTO, J. M. R.; SOUZA, S. A. (Orgs.). Para onde vai o dinheiro? Caminhos e descaminhos do financiamento da educação. São Paulo: Xamã, 2014.

YOUNG, M. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 48, p. 609-633, 2011.